Page 119 - Da Terra
P. 119

EU TINHA AQUELA PREOCUPAÇÃO                                              ARROBE


 A gente pode sempre entrapar a memória em mantas de retalhos ou carregá-la em cestos de pau, pesados como pedras,   E agora, mãe, quem me concerta? Tenho o bucho virado, preciso de um bruxo antes que me tragam ramos de buxo. Quem lê o azeite,

 sob os quais nos esbardalharemos ao comprido arruinando os cachos do pensamento. Depois, bago a bago, retalho                       a água, o vinagre? Em quem perdurará o eco das orações? Ao largo, os inimigos invejam-nos as colheitas enquanto nós ajuntamos
 a retalho, a gente pode alevantar-se do chão e recompor-se com a dignidade de um animal ferido que canta:   farelos e carregamos os burros. Eu já não passei bem por isso. Unto o pão com arrobe e consolo-me, mas com o bucho virado fica di cil.

            A gente vê tudo ao contrário. Os pássaros deixam de voar e ganham escamas, os peixes cobrem-se de pêlos e invadem florestas, os
 LINDAS VINDIMEIRAS
            homens penduram-se em cabos de alta tensão e morrem electrificados. Alguma coisa tem de bater certo. É isto, mãe, os dias vão
            passando uns sobre os outros e a gente esforça-se para não cometer o erro de Orfeu. Olhemos sempre em frente, o que lá vai, lá vai.
 SEMPRE A VINDIMAR
            São coisas que dizemos para enganar o des no. Os gregos, pelo menos,  nham Póthos, desejo que conduz à morte, desejo do que está
 QUE CORTAM AS UVAS
            ausente. Ter pothos pelos mortos é recordá-los con nuamente. Para os romanos era ardor. Vê bem, que bonito, ardor ser o desejo do
 E VÃO PARA O LAGAR  ausente. Poderão os gregos salvar-nos de sermos lusitanos? Que quererá isto dizer? As necessidades de uma vida são as mesmas


            desde Platão: comida e bebida para saciar fome e sede, roupas que nos protejam do frio, um abrigo onde nos sintamos seguros. Todas
 A gente pode alagar os olhos enquanto raspa a vinha do passado, rememorando as mãos queimadas por uma infância de   as demais, sobre estas geradas, são secundárias e, por isso mesmo, dispensáveis. A propriedade não é apenas uma coisa que se possui,

 escravatura consen da. Não tenho ideia para isso, com tanta coisa que sofri não me lembro assim de nada. Não quero   é também a angús a de perder. O acumulador existe sufocado sob quanto tem, o proprietário é servo daquilo que detém, torna-se ele
 lembrar-me  dos  quilómetros  percorridos  ao  serviço  dos  patrões.  Uma  vida  que  foi  amargura,  para  quê  lembrá-la?
            mesmo propriedade do seu património. No fundo, as coisas é que o têm a ele. Sa sfazer o básico é quanto basta à liberdade, é quanto
 Não quero.  exige a alegria de viver e aquele estado de felicidade que consiste em não haver sobressaltos. Poucos são os que o experimentam, mãe,


 O país está cheio de histórias com vinho de Guiães e trigo de Favaios, alqueires de centeio roubado da tulha e almudes de   pois foram educados para o contrário, para o sacri cio da liberdade em nome da riqueza que confundem com sucesso e do sucesso
            que confundem com progresso e do progresso que confundem com destruição. Chega-se ao termo e a conclusão impõe-se: em tudo
 vinho surripiados ao comprador. É a vindima do Torga, o pobre Vitorino asfixiado dentro do bojo da cuba. Agora Helena,
 quem conta a história dessa alma sem Tróia nem olímpicos pretendentes? A quem caberá resgatá-la das camadas de crusta   quanto deixamos a quem nos sobreviva, pouco restará que não seja dispensável e descartável. O que fomos, quanto fomos, perecerá
 sob as quais foi enterrada? Poderá a Helena de hoje ser a Helena de ontem? Terá frente o que ficou para trás?  em an quários bafientos. Seremos transaccionados como pechinchas, na melhor das hipóteses. Na pior, seremos directamente
            a rados para o lixo. Há muito me desfiz do despertador, mãe. Acordo quando as primeiras flechas de luz trespassam o sono lacerando
 Parede a parede se constrói um depósito de vinho. O que metemos lá? Com juntas de vacas, por terra ba da, tudo se   os olhos como duas chagas a sangrar realidade. O pequeno-almoço, tomo-o sozinho a olhar para o céu reves do de cinza ou as copas
 transporta.  Para  onde?  Atemos  o  peso  do  passado  à  canga  das  bestas,  elas  que  mondem  o  oneroso  iceberg  dos   das árvores atapetadas de madrigais. Faz geralmente frio nas minhas manhãs. Agasalho-me para o resto do dia com retalhos de

 recalcamentos e tragam à super cie a água ardente com que se enfornam depósitos. Passado tempo as uvas viram passas.   recordações muito an gas. De quando acordar não era cas go, mas refeição par lhada. Tu de um lado, eu do outro. E o futuro entre
 Também não vale a pena andarmos sempre bêbados de lembranças, mas de quando em quando é bom que as vomitemos.   nós. Resta de   a imagem imóvel de um rosto no pensamento, um tom a apagar-se no silêncio escuro da ausência  sica. Ainda te escuto
 Para aliviar, percebe, para aliviar.      a chamares por mim, a respiração ofegante no outro lado da linha. Perguntas-me se tenho andado bem, se preciso de alguma coisa.

            E eu respondo-te com men ras: que ainda tenho um corpo e que não estou só e que a imagem do meu rosto permanece ní da no
            sopro de quem por mim acende uma vela. É isto, mãe, nada mais a acrescentar.


 118                                                                                                                                            119
   114   115   116   117   118   119   120   121   122   123   124